Neurodivergência e Amor: Caminhos para uma Educação Fora da Norma
Amar o que é diferente é amar mais profundamente.
A escola tradicional foi desenhada para a média. Mas nenhuma criança é média. Todos os dias, crianças que fogem à norma — que não se encaixam em tempos, testes ou expectativas comportamentais — são confrontadas com rejeição subtil, avaliações desajustadas e afetos condicionados à sua adaptação ao sistema.
Estas crianças são neurodivergentes. E o convite que nos fazem é profundo: repensar não só como ensinamos, mas também como amamos.
O que é neurodivergência?
O termo neurodivergência foi cunhado por Judy Singer, socióloga australiana com diagnóstico de autismo, para descrever formas de funcionamento neurológico que diferem da norma estabelecida. A ideia não é médica — é social e política. Propõe que estas diferenças não são defeitos, mas expressões legítimas da diversidade humana.
Inclui condições como:
Perturbação do Espectro do Autismo (PEA)
Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA)
Dislexia, Discalculia, Disgrafia
Síndrome de Tourette, entre outras
Hoje, muitas comunidades preferem o termo “condição” a “transtorno”, por ser mais respeitoso e menos patologizante.
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Experiência vivida: entre escolas e famílias
Desde a primeira edição do evento Educar com Amor e Consciência, o tema do autismo tem estado muito presente — não apenas através de dados ou especialistas, mas sobretudo nas partilhas de mães e pais que vivem essa realidade todos os dias. Histórias de amor, de superação, de cansaço e de luta por acolhimento real e efetivo.
E nas formações que tenho facilitado ao longo dos anos, escuto recorrentemente o mesmo desabafo por parte das educadoras: “Na prática, estamos sozinhas.” Sentem-se pouco amparadas, sem formação adequada, com poucos recursos e muitas vezes sem equipa de apoio. O sentimento de impotência é transversal — mesmo quando há vontade, não há condições.
Durante o meu percurso como educadora de infância, acompanhei várias crianças com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) — maioritariamente rapazes. Cada uma, com as suas especificidades, desafiava-me a praticar uma escuta mais atenta, uma presença mais sensível, uma educação menos automatizada.
Contudo, é importante lembrar que o autismo também se manifesta no género feminino — embora ainda seja amplamente subdiagnosticado. Muitas meninas e mulheres autistas desenvolvem estratégias de camuflagem social desde cedo, o que dificulta o reconhecimento e o acesso a apoios. Nos últimos anos, tem-se verificado um aumento significativo de diagnósticos em mulheres adultas, o que tem trazido clareza, alívio e autoaceitação a muitas pessoas que viveram grande parte da vida sem compreender o seu próprio funcionamento interno.
E em Portugal?
Segundo dados disponíveis da Direção-Geral da Educação, observa-se um aumento de diagnósticos de Perturbação do Espectro do Autismo em idade pré-escolar, destacando-se a necessidade de formação adequada para os profissionais de educação.
Ainda que os discursos institucionais reforcem a importância da inclusão, muitas educadoras relatam na prática grandes lacunas no acompanhamento, falta de recursos humanos e insuficiência de formação contínua. A inclusão existe, sim — mas muitas vezes mais no papel do que no terreno.
Amor condicionado: um obstáculo invisível
Quantas vezes, sem intenção, educamos com amor condicionado?
“Se estiveres quieto, podes participar.”
“Quando fizeres como os outros, vais ter a mesma coisa.”
Frases como estas transmitem, subtilmente, que a criança só merece acolhimento se corresponder às expectativas da norma. E isso, para muitas crianças neurodivergentes, é viver numa tensão constante.
Práticas conscientes para educar fora da norma
Currículo flexível: seguir os princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA).
Ambiente sensorial ajustado: reduzir estímulos, prever transições e permitir pausas.
Valorizar interesses específicos: usar os focos de interesse como pontos de partida para aprendizagens significativas.
Priorizar o vínculo: a relação emocional com o adulto é a base de qualquer aprendizagem real.
Escuta como prática de Amor
Mais do que adaptar recursos, precisamos reeducar o nosso olhar. Escutar profundamente é aceitar o que a criança comunica — com palavras ou sem elas. É escutar com o corpo, com o tempo, com a intenção.
Escutar de verdade é prática diária. E é amor em ação.
Arriscar para que tudo possa melhorar
Confesso: tive reticências em escrever sobre este tema. Não sou especialista em neurodivergência, nem tenho formação clínica. Mas sou educadora. E nas formações que facilito, ouço sempre o mesmo apelo — das educadoras, das mães, dos pais:
“No papel é tudo muito bonito. Mas na realidade, falta-nos apoio. Falta-nos escuta.”
Talvez este texto não mude nada. Mas talvez faça alguma diferença. Escrevê-lo é um pequeno risco que aceito correr, porque acredito — profundamente — que tudo pode sempre melhorar.
Educar com Amor e Consciência é isto: escolher ver, escolher escutar, escolher respeitar.