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Ser um Educador Antirracista: Posicionamento e Ação

“Aprendi que sempre que faço uma escolha com o coração aberto, normalmente tomo a decisão certa.” Maya Angelou

A opção de submeter esta reflexão para publicação, nos Cadernos de Educação de Infância deste trimestre, surgiu de um lugar muito profundo em mim e que me move há muito tempo: o da justiça e equidade social. Também emerge de um sentimento de profundo amor pelos educadores, professores e crianças, pois sou uma acérrima defensora do poder da educação de infância, por ser amplamente reconhecida como a alma e o coração de todo o processo educativo.


Estou consciente de que estamos a viver um momento muito propício à reflexão sobre cidadania, racismo e antirracismo. Aliás, as recomendações do Conselho de Educação, de novembro de 2020, tornam evidente essa necessidade ao reconhecerem que “as questões da cidadania, nomeadamente as relativas à diversidade étnico-cultural e ao (anti) racismo ainda têm um tímido papel na ampla estratégia de promoção da igualdade na escola.”


Como educadores, sabemos que é na primeira infância que devem ser promovidos os conceitos de empatia, compaixão, respeito, espírito crítico e transformador para que, ao ingressarem no ensino básico, as crianças já possuam estas capacidades adequadamente desenvolvidas. É minha convicção, que esse trabalho de fundo só será eficaz se existir uma parceria estreita entre as famílias e o sistema educativo. Este é, com certeza, um desafio para os educadores, a juntar a tantos outros com que estes profissionais se deparam atualmente. No entanto, parece-me fundamental refletir sobre a seguinte questão: Haverá compromisso mais importante do que promover aquilo que defende a área de formação pessoal e social das Orientações Curriculares para a Educação Pré-escolar (OCEPE)? Mesmo não referindo explicitamente a educação antirracista, refere a transversalidade desta área em todo o trabalho desenvolvido no jardim de infância, o qual inclui o desenvolvimento de atitudes como: a tolerância, o respeito, a justiça, a cooperação, em suma, valores fundamentais a uma cidadania plena.

Na minha perspetiva (e por mais subjetiva que possa parecer), somente equipas pedagógicas munidas de multiculturalidade e dotadas de competências distintas, porém complementares, poderão provocar reflexões profundas, desconfortáveis e verdadeiramente transformadoras. Esta ideia está bem patente na pedagogia de Reggio Emillia, que tem como um dos seus princípios fundamentais o educador enquanto pesquisador, enquanto alguém que se posiciona como um eterno aprendiz, que não assume verdades absolutas, mas que adquire verdades em constante construção e mutação.


O educador sempre foi, e continua a ser, um aliado fundamental na construção de uma sociedade mais justa, afetuosa e igualitária, mas no que diz respeito ao seu posicionamento enquanto Educador Antirracista é necessário que este evidencie um profundo compromisso para com esta missão. E porquê? As pesquisas mostram que as crianças reconhecem o conceito de raça e desenvolvem vieses implícitos a partir dos três anos de idade, e é durante esta fase do seu desenvolvimento que estas associações já se refletem nas interações relacionais e sociais.


Há quem acredite que não é necessário falar sobre raça com as crianças no decorrer da primeira infância, porque esta atitude só irá fomentar a construção de estereótipos nas suas mentes. Existe igualmente a crença de que o preconceito racial é absorvido no meio familiar, mas estudos mostram que não é necessariamente assim, até porque as crianças estão motivadas a aprender e a se conformar às regras vigentes em sociedade, o que as ajudará a sobreviver em ambientes distintos daqueles a que estão habituadas nos seus redutos familiares. Ou seja, de uma forma ou de outra, as crianças irão absorver e demonstrar num determinado momento que estão ‘poluídas’ pela construção social do racismo, caso este se encontre disseminado em qualquer dos espaços por elas frequentado.


Confesso que uma das minhas maiores preocupações são os adultos que têm a responsabilidade de educar, e que não estão conscientes do impacto causado por aquilo que dizem e fazem, acabando, muitas vezes, por transmitir mensagens enviesadas a todas as crianças que se encontrem ao seu cuidado. Aliás, o nome dado a este fenómeno amplamente estudado é MICROAGRESSÃO.



O teste da boneca é um dos exemplos em como as crianças interiorizam os vieses implícitos. Eu própria, quando estava em sala do pré-escolar como educadora, passei por uma situação semelhante, e confesso que congelei por alguns segundos, a pensar no que faria e como lidaria com a situação.


O referido teste foi criado por Kenneth e Mamie Clark, no final dos anos 30 do século passado, para determinar os efeitos psicológicos da segregação racial nas crianças norte-americanas em idade escolar. O resumo do estudo foi publicado em 1950, e chegou à conclusão de que mesmo que as crianças não fossem explicitamente ensinadas a discriminar, de forma inconsciente acabavam por fazê-lo, pois eram as atitudes que prevaleciam na época.


Tenho plena consciência do desconforto que falar de racismo provoca, mas defendo que é fundamental estar confortável no desconforto quando nos posicionamos como antirracistas. Para ajudar nesse processo, decidi criar uma formação onde procuro convergir o mindfulness na educação com o antirracismo, pois confio que muitos de nós desejemos adquirir o máximo de ferramentas, recursos e estratégias possíveis para aprender a lidar com este novo paradigma de luta contra as desigualdades estruturais como o racismo.


Quase todos os educadores com quem já trabalhei dizem não ser preconceituosos, e que veem todas as crianças como iguais. Há quem me tenha dito que não vê cor, o que, segundo a autora americana Robin DiAngelo, se traduz em daltonismo racial. Na prática, dizer-se que ‘não se vê cor”, significa que não se reconhece a diversidade no ambiente educativo. É preciso ‘ver cor’, e reconhecer que como educadores temos uma responsabilidade social e política na formação dos novos líderes e influenciadores do futuro. É imperativo perceber-se o terreno privilegiado da Educação de Infância, pois é aqui que as crianças começam a absorver os códigos sociais da comunidade onde estão inseridas. É nesta fase que as suas perceções sobre o outro que, em muitos casos, não possui as mesmas características físicas, culturas, sociais e económicas, se começam a estruturar.


Como defendia Buda: “Para ensinar os outros, primeiro terás de fazer algo muito importante, terás que te endireitar a ti mesmo.”


É preciso que todos nós, pais, educadores, professores, sociedade em geral, olhemos para a forma como julgamos aqueles que são diferentes de nós e, consequentemente, percebamos como esses julgamentos influenciam as nossas decisões e interações diárias.


A tomada de consciência desse processo interno é fundamental para que a desconstrução se possa iniciar. A jornada é longa, mas necessária e imprescindível para que todos possamos viver em unidade e respeito. Sei que parece um cenário utópico, mas eu acredito que é possível, se olharmos para dentro de cada um de nós. Comecemos por aí: sem admitirmos que somos todos consequência de um sistema injusto e agressor, e independentemente de onde nos posicionarmos, o ódio e a raiva estarão presentes. A diferença é que o ódio destrói e a raiva alimenta a mudança. O ódio é o sentimento que originou o racismo, e a raiva é o sentimento que diz basta e alimenta o posicionamento antirracista.


Todos temos a responsabilidade de educar para o ANTIRRACISMO, pois a partir do momento em que estamos em interação e inter-relação uns com os outros, o ato de educar e de influenciar está permanentemente presente.


Alguns passos para começar o processo de se tornar um Educador Antirracista


Faça uma autoavaliação!

Considere as seguintes frases e escolha as que melhor se adequam àquilo que sente:

1. Prefiro não falar de raça e racismo.

2. Sinto-me desconfortável ao falar de raça e racismo.

3. Sinto-me confortável ao falar de raça e racismo.

4. Qual é a parte mais fácil ou difícil de falar sobre racismo?

· Para educar para o antirracismo, pesquise cuidadosamente as influências culturais dos seus alunos pertencentes a minorias étnico-raciais, pergunte aos seus progenitores/cuidadores, e inclua no seu ambiente educativo elementos que os representem, como, por exemplo, contos representativos, artefactos, etc

· Comece por distinguir Racismo de Antirracismo. Perceba que um significa inação e o outro significa ação.

· Estude sobre as contribuições de Paulo Freire e Celestin Freinet para uma Educação Antirracista.

· Siga académicos portugueses como, entre outros, Cristina Roldão e Marta Araújo.

· O CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia) tem organizado seminários online sobre Racismo em Portugal.


Considerações Finais


A história e a ciência tiveram uma responsabilidade preponderante na disseminação deste sistema racial que nos divide. O ambiente educativo das creches e jardins de infância em Portugal sempre refletirá a cultura dominante, o que limita as vantagens daquilo que a diversidade nos tem a ensinar a todos – compreensão e conhecimento de outras culturas. Ficamos mais próximos e conectados como seres humanos dessa forma.


Raça e Racismo são conceitos inventados, que criaram um sistema injusto, subversivo e opressor com poderosas ramificações e funções. Cabe-nos a nós não cair na armadilha da história única, e procurar entender como o OUTRO se sente, e porque age e reage de determinada forma. Contudo, considero que o posicionamento e a ação antirracistas trarão uma maior harmonia e equilíbrio às nossas sociedades. Como diz a filosofia Ubuntu, “eu sou porque tu és”, máxima que contrasta profundamente com a ideia do individualismo promovida pelas sociedades anglo-saxónicas, e promove uma comunhão e união que ajuda a que as pessoas se vejam para além das construções sociais a que estão expostas. Que nos vejamos a todos com amor, respeito e unidade.


Referências:


Ribeiro, Djamila (2019). Pequeno Manual Antirracista. São Paulo. Companhia das letras


DiAngelo, Robin (2020). Não basta não ser racista, sejamos antirracistas. São Paulo. Faro editorial


Conselho Nacional de Educação (2020) , Recomendação sobre Cidadania e Educação Antirracista


Winkler, Erin (2009). Children are not colorblind: How young children learn race. Pace Vol 3- No.3, University of Wisconsin-Milwaukee


Van Dunem, F. (9 de julho, 2019). “A maior expressão de preconceito racial consiste na negação desse preconceito”. Público.https://www.publico.pt/2019/07/09/sociedade/opiniao/francisca-van-dunem-maior- expressao-preconceito-racial-consiste-negacao-preconceito- 1879342


Jones, J. M. (1972). Prejudice and racism. New York: McGraw-Hill.


Silva, I. (coord.) et al. (2016). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Lisboa: Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação (DGE)


Edwards, C, Gandini, L, Forman G. (2016). As cem linguagens da criança. A abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. (vol1). Porto Alegre. Penso Editora


Santos, I. A. A responsabilidade da escola na eliminação do preconceito racial: alguns caminhos. In: CAVALLEIRO, E. (Org.). Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo: Selo Negro, 2001. p. 97-113.



Nota: Artigo publicado nos Cadernos de Educação de Infância da Associação de Profissionais de Educação de Infância (publicação número 122 Janeiro/Abril 2021)



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